terça-feira, 7 de maio de 2013


FUGA: UM QUARTO PARA SI





Diário de bordo – 22.01.2008

O início do costurar...



Começo pelas margens... Margens aqui tomadas como fios soltos, fragmentos de uma escrita por vir. Fragmentos, esboços de movimento, linhas, traçados iniciais de uma figura. Construo no meu corpo uma linha e com ela duas figuras ensaiam uma aparição: a menina e a caixa. Seus contornos frágeis aparecem, como devem ser os de toda figura. Essencial é que não as fechemos em imagens, que as deixemos, um contorno no branco da folha, a sensação primeira de uma busca no corpo... Assim permanecem permeáveis às metamorfoses dos encontros.

Compraz-me que essa menina – que no seu quase desaparecimento cintila uma forma – dance, e que seu corpo apesar de portar limites, escritas e enovelamentos, não se fecha nunca. É que não quero, nesse esforço inicial de escrita, me lembrar das diferentes maneiras em que um corpo se fecha, se forma, se conforma ao mundo e ao Outro. E não quero lembrar que a tendência de trancar-se precipitadamente numa forma é particularmente pregnante nos corpos que dançam. Desde pequena queria ser bailarina, e muito cedo aprendeu a portar/cortar gestos: ser feminina, leve, suave, flexível ...

Não, essa figura que se insinua de forma evanescente não sou eu, eu a inventei , como inventamos formas que acabam por nos habitar de maneira tão intensa, entranhando em ossos e tecidos, que não sabemos mais quem é o autor da história. Eu ou aquela que ao inventar me inventou de novo?... De outra forma... Aqui uma metamorfose já se deu...

Descobrir o que está em jogo em dançar é por demais forte e ela sentia que escrever sobre isso era abrir a caixa de Pandora, “présentia- se” o desastre. A menina e a caixa... O desastre... Ouvir o escuro, escutar com os ouvidos da pele, dos ossos, das articulações.

Mergulhar no fundo de uma claridade tão ofuscante que ao cegar faz ver. Pois ver se faz no entremeio da cegueira.

Aprendo com Maurice Blanchot (1990) que a eminência do

desastre tem algo a ver com a queda, a queda de um astro... Uma queda que é um salto ou um apelo para que o salto se faça – salto sem garantias.

Sabemos dessa menina que ela vivia em busca de estrelas cadentes que pudessem tornar reais os desejos. Vivia em busca de palavras que pudessem roçar o corpo. Queria mapear o movimento do desejo, rasurar corpos ou ao menos tatear que coisa era aquela a latejar em seu corpo e que, tal qual a personagem G.H de Clarice Lispector, já estava a acreditar que latejar era ser uma pessoa3.

Pressentia a queda, o chamado do corpo. Esse chamado, como voz longínqua, fazia ruído, causava interferência, criava dobras, circunvoluções, incertezas e inquietava o olhar... Obliterava as certezas em torno das quais sustentava seu corpo. Tornava opaco e oblíquo onde só havia reta. Essas interferências, algo de fora que grita dentro, faziam com que sua dança, ou pelo menos todo esse saber sobre o corpo que sustentava sua dança, se mostrasse frágil demais para dar suporte àquele fundo pulsante. Dançar tornava-se, pouco a pouco, uma experiência desconcertante. Um corte se deu... O saber sobre o corpo que dança não era mais capaz de sustentar o seu corpo. O corpo gritava, pedia transformações...

Precisava encontrar seus espaços, seus pontos de perda. Seu desenho, que não era nem aquele do espelho e nem aquele que o Outro4 lhe espelhava.

É que o desenho do corpo de cada um é demasiadamente singular, e isso era a beleza e o risco... O risco e a beleza eram o desastre...

sábado, 17 de setembro de 2011







A correria faz a gente perder tanto! O vento no rosto, o amigo que, ao invés de falar com você, deixa recado em sua secretária eletrônica ou na caixa postal do seu celular. Perdemos a capacidade de observar por observar. Perdemos o direito à inutilidade de nossos atos. Perdemos o prazer? Corremos para possuir coisas: Carreira. Sucesso. Dinheiro. Todos se ocupando de suas vidas, cronometrados por um tempo que, se corre no relógio, não corre na vida. A vida é que corre. Corre sem que possamos nos perguntar porque nela corremos, porque dela fazemos uma sequência de fatos corridos. Fatos esses que muitas vezes por estarmos correndo, vivendo mais lá do que aqui, diante do outro, sequer pesamos a importância que têm para nós. Tudo passa a ter o mesmo gosto, a mesma importância. As pessoas, os eventos, os trabalhos passam a ser meios para se chegar lá. Existe uma galera vivendo assim. E como o coelho de Alice nos unimos ao coro: "Eu preciso chegar lá, eu preciso chegar lá, eu preciso chegar lá..." E quando chegarmos podemos talvez olhar para trás e ver a vida que deixamos no caminho.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Vestígio

Ana Medienta
“Uma única folha desprendeu-se do olmo na esquina e, em meio a pausa e silêncio total, caiu. De algum modo, foi como se caísse um sinal, um sinal que apontasse para uma força nas coisas que havia passado despercebida. Pareceu apontar para um rio que corria, invisível, do outro lado da esquina, descendo a rua, e que levava as pessoas e as girava em redemoinhos...

Nesse ponto, escutei, toda ouvidos, não exatamente o que estava sendo dito, mas o murmúrio ou correnteza por trás. Sim, era isso — ali estava a mudança. Antes da guerra, num almoço como esse, as pessoas diriam precisamente as mesmas coisas, mas elas teriam soado diferente, pois, naqueles dias, eram acompanhadas de uma espécie de cantarolar, não articulado, mas musical, excitante, que alterava o valor das próprias palavras. Seria possível pôr em palavras aquele cantarolar? Talvez sim, com a ajuda dos poetas”.


Virgínia Woolf

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Digestivo 2

Sempre chega um dia onde percebes o que é um círculo. Um círculo é onde os componentes se respeitam. Onde as partes se conhecem. Onde um olhar chega para perceber o que está bem, o que está mal. Um círculo é onde há lugar para crescerem vidas. A tua vida. O círculo não é apenas o que está próximo. É o que está dentro. E até o que está dentro pode estar em muitos lugares.

Sempre chega um dia onde percebes que o teu círculo é muito pequeno. E depois um outro dia, onde encaras que o teu círculo é ainda mais mínimo. Inspiras forte, piscas os olhos. Custa-te um pouco. Mas segues em frente.

Luís Felipe Cristóvão

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Oficina Residência Taanteatro 2009


Durante muito tempo acreditei que a dança só acontecia no corpo. Que do corpo dependia o dançar... Mas eu dançava tanto na cabeça... Eu imaginava, inventava e quando via, já estava a dançar. Dançava com sílabas, compunha frases soltas, comia as palavras para que elas começassem novamente a pulsar, a fazer urgência no corpo... E o corpo? Esse era também inventado. Às vezes era letra, gozo, vazio, medo e, finalmente, movimento. Talvez seja fato de que a dança (em meu percurso de bailarina) tenha sempre vindo depois. Ou melhor, junto... Com a letra, com a música, com o branco, com a flor colocada em meus pés, com o ritual de passagem, com a passagem. Talvez seja fato que tendo dançando tanto, eu saiba tão pouco da dança... Ela para mim continua uma espécie de enigma, de terreno inexplorado, sempre a me convidar. A tecer uma espécie de cobrança em seu apelo ensurdecedor (mas não posso deixar de dizer, estranhamente prazeroso esse ruído). O canto da sereia...

Da minha experiência com a Maura Baiocchi não posso falar, foi única... Mas me lembro da menina se reinventando, de suas gargalhadas... Aquela que um dia fui eu... Me lembro de chorar diante de tanta liberdade... E de duvidar que ela fosse possível de novo. A mandala.O caminho reencontrado... O tempo redescoberto...

Depois de se tornar bailarina é possível dançar irresponsavelmente?

Acho que não... Talvez não...

Lembro-me dos pés sujos de barro,da argila e de improvisar durante horas... Lembro do afeto, da pentamusculatura, do respiro...

Ai, eu me lembro...

Obrigada Maura, obrigada...

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Ao ver o abandono da velha casa: o mato a crescer das paredes
Ao ver os desenhos de mofo espalhados nos rebocos carcomidos
Ao ver o mato a subir no fogão, nos retratos, nos armários
E até na bicicleta do menino encostada no batente da casa
Ao ver o musgo e os limos a tomar conta do batente
Ao ver o abandono tão perto de mim que dava até para lamber
Pensei em puxar o alarme
Mas o alarme não funcionou.
A nossa velha casa ficou para os morcegos e os gafanhotos.
E os melões-de-são-caetano que subiram pelas
paredes já estão dando seus frutos vermelhos.

Manoel de Barros
Retratos do artista quando coisa, Ed. Record, 1998